REDE BRASIL ATUAL: OLHOS GORDOS EM AREIA GRANDE, NO SERTÃO DA BAHIA





Por José Paulo Borges 

Há mais de 150 anos, os moradores de Areia Grande cultivam uma maneira de viver transmitida de geração em geração, conhecida como fundo de pasto. Os rebanhos de cabras e bodes, principalmente, e também as ovelhas e o gado das cerca de 400 famílias são criados soltos na caatinga, numa área de uso coletivo de 26 mil hectares. Esses animais, rústicos e muito resistentes às estiagens comuns na região, se alimentam livremente nas pastagens nativas. O distrito fica numa área de dunas do Rio São Francisco, formada pelas comunidades de Jurema, Riacho Grande, Melancia e Salina da Brinca, no município de Casa Nova, norte da Bahia.


Não existem cercas indicando os limites de um fundo de pasto. As únicas áreas cercadas são os roçados ao redor das casas, onde os moradores criam pequenos animais e praticam agricultura de subsistência. Como as terras coletivas onde os animais maiores são soltos para pastar ficam atrás desses roçados, a tradição se encarregou de batizá-las de "fundo de pasto" – no Cerrado, são "fecho de pasto".
As raízes do sistema de fundo de pasto remontam ao Brasil Colônia. Quem cuidava nos confins do sertão do gado dos grandes criadores, que preferiam viver no litoral, eram os vaqueiros – homens rudes e livres que recebiam filhotes como pagamento por seus serviços.
"Aqui todo mundo ou é parente ou é compadre de todo mundo", brinca Joaquim Pereira da Rocha, o Quinquim, 76 anos, um dos moradores mais antigos de Areia Grande. Isso acontece, segundo ele, porque o trabalho numa terra compartilhada acaba criando laços de parentesco e compadrio muito fortes entre os moradores, além de desenvolver um senso muito consistente de coletividade e solidariedade.
O dia a dia é de trabalho duro no fundo de pasto de Areia Grande. Os animais são soltos logo cedo para se alimentarem nas terras comunitárias, e recolhidos aos currais de cada morador quando anoitece. Um sino amarrado no pescoço de alguns, cujo som os donos identificam de longe, ajuda na tarefa de recolher a criação.
Como os animais vivem misturados no campo aberto, os pastores e vaqueiros se revezam nos cuidados do rebanho de toda a coletividade. Se alguém observa algum animal doente – com "bicheira", por exemplo, provocada por moscas varejeiras, o que pode ser fatal – mesmo que não seja dele, imediatamente amarra o bicho em algum lugar e logo avisa o dono.

Quando não há trabalho haja festa em Areia Grande. A agenda cultural e religiosa é movimentada. Em janeiro acontece um Reisado na comunidade de Jurema. São José é comemorado por todos com procissões e novenas no mês de março.
Em maio, Riacho Grande homenageia a padroeira, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. E forró pé de serra não falta na festa da mandioca de Melancia, em outubro. Uma das principais plantações do fundo de pasto de Areia Grande é a mandioca, transformada em farinha e tapioca (comida de origem indígena), afamadas pela qualidade.
As casas de mandioca até hoje utilizam métodos tradicionais desconhecidos na cidade grande. Atividade mais recente é a apicultura. Existem milhares de colmeias espalhadas na região.
Um dos primeiros habitantes de Areia Grande foi Manoel Pereira da Silva, o Manoel Pracatão (consta que era chamado assim por causa das alpercatas, muito grandes, que usava). Pracatão chegou, segundo velhos registros, em 1860, fugindo de uma seca brava que castigou a cidade de Crato, no Ceará. Na nova terra, casou-se com Cipriana, com quem teve muitos filhos. Joaquim Ferreira da Rocha, o Quinquim, é dessa estirpe.
Quinquim pode ficar horas contando as histórias sobre coisas antigas de Areia Grande, passadas por sua mãe, Honorina. "Não existe caatinga como a nossa. Mesmo sem chuva, nunca falta folha verde por aqui. Acho que é por isso que os gananciosos sempre cresceram os olhos pra cima da gente", matuta o velho vaqueiro.
Pois são justamente esses "olhos grandes", segundo Quinquim­, os responsáveis pelas agruras que Areia Grande vem passando há mais de 40 anos. Começou com a construção da barragem de Sobradinho, nos anos 1970.
A obra do regime militar não fez o sertão virar mar, mas transformou a vida de milhares de sertanejos num inferno. Por imposição do governo, muita gente teve de abandonar suas casas, sepultadas pelas águas, e obrigada a morar em agrovilas distantes até 700 quilômetros da beira do São Francisco, onde sempre viveram. Areia Branca, porém, fincou o pé. Os moradores não abandonaram o lugar deles. Foi o começo de uma longa saga de luta e resistência que dura até hoje.
Em 1979, assentada a poeira levantada pela construção da barragem, Areia Grande sofreu outro duro golpe. Na época, a empresa Agroindustrial Camaragibe, com apoio da oligarquia local, instalou no fundo de pasto um empreendimento destinado a produção de biodiesel e álcool a partir da mandioca, financiado com recurso do Proálcool.
Mais tarde, descobriu-se que os títulos de posse das terras tomadas dos moradores tradicionais eram fraudulentos, fruto de grilagem. A posse era ilegal porque as terras, historicamente reconhecidas como públicas devolutas, têm seu uso garantido pela comunidade. Não demorou muito e a Camaragibe abandonou o projeto, deixando atrás uma dívida milionária, que estourou no chamado Escândalo­ da Mandioca de desvio de dinheiro público.

A fraude provocou imensos danos ambientais que até hoje não foram reparados na caatinga. De acordo com laudo técnico produzido pela empresa Consultoria e Assessoria em Agropecuária Orgânica (Agrorgan), a Camaragibe devastou uma área de 1.945 hectares de caatinga, para plantação de mandioca. "O uso agrícola intensivo realizado pela Camaragibe resultou em perda total de resiliência e consequente inexorabilidade da degradação daquela parcela de dunas. A reversão de tais processos requer grandes investimentos financeiros", atesta o relatório.
"Muitas espécies de abelhas nativas desapareceram. Também não se veem mais por aqui animais e aves como o tamanduá, o gambá, a cotia, o juriti e a asa branca", lamenta Quinquim. O vaqueiro também acusa a Camaragibe pela perda de espécies vegetais da caatinga, como a resineira – fonte de renda para a comunidade, que extraía e vendia o látex usado na calefação de cascos de embarcações. A resineira e outras árvores sertanejas viraram cinzas e hoje jazem entre as ruínas da empresa.

O gibão e a perneira

Mas a luta dos sertanejos de Areia Grande pela preservação de seu modo de vida não parou por ali. Outro momento tenso do conflito agrário aconteceu no dia 6 de março de 2008, durante o cumprimento de um mandado de imissão de posse concedido pela Justiça de Casa Nova a dois empresários que se apresentaram como supostos proprietários das terras.
Eram 5h da manhã, quando policiais civis e militares, sob a supervisão de um oficial de justiça, tentaram expulsar as famílias a força da área em disputa. Cercados, chiqueiros, incontáveis caixas de mel e algumas casas foram derrubadas por tratores.
Para preservar a memória do vaqueiro assassinado, todos os anos, em fevereiro, o povo local reza um terço ao pé de uma cruz feita de cacuricabra – madeira nobre do sertão – fincada no alto de uma duna, nas proximidades do local onde o corpo de Zé de Antero foi encontrado.
Persiste o conflito nos dias de hoje. A comunidade permanece firme e não abre mão de seu modo de vida. "Volta e meia, somos surpreendidos por novas ameaças", atesta o líder comunitário Zacarias Rocha.
Segundo ele, as pressões atuais partem de poderosos grupos empresariais que querem instalar na região projetos de produção de energia eólica e de mineração. Esses grupos, conta Zacarias, muitas vezes têm o respaldo de decisões judiciais controvertidas, que ignoram os direitos adquiridos pela população local ao longo de mais de 100 anos. "Além de passar por cima dos nossos direitos, ignoram que ninguém sabe cuidar e preservar a caatinga melhor do que nós."

A tormenta mais recente no fundo de pasto de Areia Grande desabou no último mês de julho. Uma sentença proferida pelo juiz de Casa Nova, Eduardo Padilha, colocou as 400 famílias do território sob o risco de despejo. O despacho autoriza, inclusive, o uso de força policial.
Na comunidade, o receio de que o terror vivido em 2008 e uma tragédia como a de 2009 se repitam é grande. "Estamos unidos. Não será essa decisão arbitrária que fará com que entreguemos nossas terras", afirma Zacarias. O cego Gerônimo Fernandes Braga, 94 anos, e sua mulher, Maria Zulmira Gomes, 91, moradores mais antigos, indagam: "Se nos tirarem daqui, onde vamos morar?"
O futuro do morador mais novo, Gabriel Silva da Rocha, que nasceu no último dia 15 de maio, também é incerto. A Comissão Pastoral da Terra de Juazeiro e outras entidades da sociedade civil estão contestando a decisão.

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