CARTA DA FOZ




 Há 20 anos, no dia 04 de outubro de 1993, chegávamos aqui à foz do Rio do São Francisco, depois de um ano em peregrinação pelas barrancas, ilhas, povoados e cidades do “Velho Chico”. Buscávamos sensibilizar e mobilizar a população ribeirinha em defesa do seu Rio, dom de Deus, cada vez mais degradado, ameaçado, destruído. E chamar as autoridades às suas responsabilidades por esta situação. Voltamos hoje, 15 de novembro de 2013, acompanhados de mais de 600 pessoas, representantes de 62 entidades sociais de toda a Bacia Hidrográfica, em Romaria à Foz, a celebrar – “tornar célebre”, memorável – aquele evento e seus efeitos para o momento atual.

Um olhar sobre estes 20 anos nos inquieta e provoca ainda mais. É certo que muitas ações foram desenvolvidas, houve lutas e resistências, até autoridades agiram… Mas não foi suficiente para impedir o processo de degradação do Rio São Francisco! Antes, o que ocorreu é que este processo se agravou. A ponto de estudos do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica (NCAR), no Colorado (EUA), concluírem que ele perdeu mais de um terço de sua vazão (35%) ao longo de 56 anos, entre 1948 e 2004, tornando-se um dos grandes rios mais degradados do mundo.

 “Meu Rio de São Francisco, / nesta grande turvação, / vim de dar um gole d’água / e pedir tua benção!” Este era o refrão do canto principal da Peregrinação e dizia bem qual era a sua proposta: chamar a atenção para os problemas do Rio (“grande turvação”) e para a necessidade urgente de lutar em sua defesa (“gole d’água”) e celebrar a fé que anima esta luta e toda a vida (“pedir tua benção”). Imperiosa necessidade de continuar entoando na prática este canto!

A “turvação” que sofria o rio era evidente nos quatro principais problemas então encontrados: o desmatamento (que leva ao assoreamento, ao aumento das “croas”), as barragens, os grandes projetos de irrigação e a poluição. A partir dos meados do século XX, o Rio São Francisco foi acumulando usos econômicos múltiplos, cumulativos e indisciplinados, que em pouco tempo o colocaram nesta situação terminal.

E este processo não para. Àqueles quatro principais problemas, que não cessaram, mas se agravaram, a eles foram acrescentados novos usos ameaçadores. Centenas de novas barragens, falsamente minimizadas como “pequenas centrais hidrelétricas”, às quais se somam parques eólicos indiscriminados e até usina nuclear; expansão dos desmatamentos nos Cerrados, geradores das águas, e agora também das Caatingas; mais perímetros irrigados para frutas e cana-de-etanol; mineradoras que desconhecem restrições em praticamente toda a Bacia… Tudo se enlaça num arranjo mortífero em nome do crescimento econômico e do lucro extremo do capital globalizado, a flexibilizar leis e tratar como “entraves” povos e comunidades e os limites da natureza.

Desrespeito maior ao rio é o malfadado projeto de Transposição de águas. Iniciado há seis anos, já custa quase três vezes mais o valor divulgado inicialmente – ultrapassa os 8 bilhões de reais. Além de dinheiro público para as empresas, só conseguiu mesmo foi votos nas eleições. Já a revitalização do rio, anunciada em troca da transposição, se restringe ao programa Água para Todos e ao esgotamento sanitário mal feito e superfaturado. Ontem, em Floresta – PE, na “benção da adutora” do Pajeú, que leva água a 80 mil pessoas do sertão, quisemos reafirmar e apoiar as verdadeiras soluções para a escassez hídrica; a transposição, esta está por si mesma condenada.

A região da foz onde estamos é das que mais sofre. Depois de todas as barragens, sobra água pobre de nutrientes e poluída de venenos, que não fertiliza mais as várzeas, nem alimenta as “lagoas criadeiras”. O peixe escasseia, o mar avança. Os pequenos produtores de arroz são pressionados para dar lugar a outros projetos, a cana para etanol… Áreas da União ocupadas há muito tempo por comunidades ribeirinhas são disputadas por fazendeiros. O município de Brejo Grande – SE foi declarado recentemente pelas autoridades como território do Quilombo Brejão dos Negros, mas aumenta a pressão violenta sobre os moradores e os apoiadores de sua luta. Aqui mesmo, em Penedo, 26 famílias moradoras e usuárias da Ilha do Jegue, acabam de receber a decisão judicial de que a ilha, Patrimônio da União, “pertence” a uma fazendeira de fora…

A Peregrinação foi uma Caminhada entre a Vida e a Morte! Mexeu tanto com o povo como com as autoridades. Uns e outros foram levados a reconhecer a situação alarmante de degradação do Rio. Deste reconhecimento nasce a expressão “revitalização do rio São Francisco” para dizer de uma necessidade imperiosa afirmada pelo povo e, a partir daí, uma pauta política relevante no país.

Rio Vivo, Povo Vivo! Rio Morto, Povo Morto! A mensagem desta insígnia é de que Rio e Povo dependem um do outro. E de que “cada um é responsável pela vida do Rio e é capaz de fazer algo pela sua recuperação”. E mais fará se estiver unido a seus irmãos e irmãs, companheiros e companheiras.

O “gole d’água” era e é toda a iniciativa feita pela defesa e preservação do Rio. Para simbolizá-lo, centenas de milhares de árvores foram plantadas nas barrancas do rio durante a Peregrinação. Um gesto de real importância para o Rio que perdeu 95% de suas matas ciliares. Além do plantio de árvores, muitas iniciativas surgiram durante e depois da Peregrinação, por ela motivadas, em parceria com amplos setores do poder público e da sociedade organizada: preservação de nascentes e matas, mutirões de limpeza da beira do Rio, educação ambiental e semanas ecológicas, fortalecimento e criação de consórcios intermunicipais de recuperação de matas ciliares, programas de reciclagem do lixo, criação de comitês de microbacias etc. Em 2005, para congregar e fortalecer o esforço popular constitui-se a Articulação Popular São Francisco Vivo.

Com alegria, vemos que o povo sanfranciscano não assiste apático às agressões contra seu rio, mas resiste e se mobiliza.  Como na região da foz, têm acontecido em toda a Bacia lutas de enfrentamento dos projetos degradantes: manifestações, trabalhos de base e de educação ambiental, atividades culturais, retomadas de territórios por povos tradicionais (indígenas, quilombolas, pescadores, comunidades dos Cerrados e das Caatingas), e resistências também de grupos urbanos.

É nessa vitalidade das lutas populares que depositamos a esperança de vida para o Velho Chico. Quando decidimos dedicar um ano de nossas vidas dialogando com as comunidades ribeirinhas e organizações populares, respondemos a um chamado e convidamos muitos pés para a caminhada. Esta peregrinação não é um ato heroico de poucos, é mutirão de muitas pessoas, é uma resposta de gratidão ao Velho Chico e um convite a mudar o rumo de uma morte anunciada. São Francisco Vivo – Terra e Água, Rio e Povo!


Foz do Rio São Francisco, 15 de novembro de 2013

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