LEMBRAR: PESQUISADOR PREVÊ FIM INEXORÁVEL DO RIO SÃO FRANCISCO
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Barragens geraram grandes impactos |
Em 556 páginas e quase
três quilos de textos, mapas e muitas fotos, a publicação é o mais completo
retrato da Caatinga, único bioma exclusivo do Brasil e extremamente ameaçado. O
título do primeiro dos 13 capítulos, assinado por Siqueira, é um alerta: “A
extinção inexorável do Rio São Francisco”.
— Mostro os elementos de
fauna e da flora que já foram perdidos. É como uma bicicleta sem corrente, como
anda? E se ela estiver sem pneu? E se na roda estiver faltando um raio, e
quando a quantidade de raios perdidos é tão grande que inviabiliza a bicicleta?
Não sobrou nada no Rio São Francisco. Sinceramente, não sei o que vai acontecer
comigo depois do livro, mas precisava dizer isso — desabafa o professor da
Univasf. — Queremos que o livro sirva como um marco teórico para as próximas
décadas. Vou provar daqui a dez anos o que está acontecendo.
Ao registrar o estado
atual do Rio São Francisco, o pesquisador estabelece pontos de comparação para
uma nova pesquisa, a ser feita no futuro, medindo os impactos dos usos do rio.
Além do desvio das águas, há intenso uso para o abastecimento humano,
agricultura, criação de animais, recreação, indústrias e muitos outros.
Desaguam no Velho Chico milhares de litros de esgoto sem qualquer tratamento.
Barramentos — sendo pelo menos cinco de grande porte em Três Marias,
Sobradinho, Itaparica, Paulo Afonso e Xingó — criam reservatórios para usinas
hidrelétricas. Elas produzem 15% da energia brasileira, mas têm grande impacto.
Alteraram o fluxo de peixes do rio e a qualidade das águas, acabaram com lagoas
temporárias e deixaram debaixo d’água cidades ou povoados inteiros, como
Remanso, Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado e Sobradinho.
Com o fim da piracema, uma
vez que os peixes não conseguiam mais subir o rio para se reproduzir, o declínio
do número de cardumes e da variedade de espécies foi intenso. Entre as mais
afetadas, as chamadas espécies migradoras, entre elas curimatá-pacu,
curimatá-pioa, dourado, matrinxã, piau-verdadeiro, pirá e surubim.
Não foram as barragens as
únicas culpadas pelo esgotamento de estoques pesqueiros do Velho Chico.
Programas de incentivo da pesca, que não levaram em consideração a capacidade
de recuperação dos cardumes, aceleraram a derrocada da atividade. Espécies
exóticas, introduzidas no rio com o objetivo de aumentar sua produtividade,
entre elas o bagre-africano, a carpa e o tucunaré, se tornaram verdadeiras
pragas, sem oferecer lucro aos pescadores.
A região do São Francisco,
que já foi considerado um dos rios mais abundantes em relação a pescado no país,
precisa lidar com a importação em larga escala de peixes, sobretudo os
amazônicos, para suprir o que não consegue mais fornecer. Uma das espécies mais
comercializadas na Praça do Peixe, a 700 metros do rio, é o cachara (surubim)
do Maranhão ou do Pará. Nos restaurantes instalados nas margens do Rio São
Francisco, o cardápio oferece tilápias cultivadas ou tambaquis importados da
Argentina.
A mudança provocada pelo
homem tanto nas águas do Velho Chico quanto na vegetação que o circunda foi
drástica e rápida. Tendo como base documentos históricos disponíveis, entre
eles ilustrações de expedições de naturalistas importantes, como as do alemão
Carl Friedrich Philipp von Martius, é possível ver a exuberância do passado. Um
desenho feito há 195 anos mostra os especialistas da época deslumbrados com
árvores de grande porte, lagoas temporárias, pássaros em abundância. Ou seja,
uma enorme biodiversidade, que hoje não existe mais.
Menos de dois séculos
depois, restam apenas 4% da vegetação das margens do Rio São Francisco.
Desprovidas de cobertura verde, elas sofrem mais com a erosão, que assoreia o
rio em ritmo acelerado. Os solos apresentam altos índices de salinização e os
açudes ficam com a água salobra. Aumentam as áreas de desertificação. O Velho
Chico está praticamente inviável como como hidrovia. Espécies foram extintas e
ecossistemas estão profundamente alterados.
Diante da expectativa da
“extinção inexorável do Rio São Francisco”, o livro ressalta a importância de
gerar conhecimento científico. Não apenas os pesquisadores precisam se debruçar
mais sobre o bioma como também o senso comum criado sobre a Caatinga a
empobrece. Por isso o título do livro optou por “Caatingas”, no plural,
chamando a atenção para sua enorme diversidade.
Fonte: O Globo
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