ÁGUA MOLE EM TERRA DURA: UMA PEQUENA REVOLUÇÃO NO SERTÃO DO PERNAMBUCO


Em Pernambuco, assentamentos no Vale do São Francisco mudam radicalmente a vida de centenas de sertanejos através da produção irrigada de frutas


Florisvaldo, assentado do MST, apresenta a plantação de uvas. Fotos: Verena Glass

Petrolina (PE), Santa Maria da Boa Vista (PE)  – Faz 40 anos que a chuva não faltou assim em Pernambuco. A seca de 2012, que levou 122 municípios a decretar estado de emergência, matou de fome cerca de 200 mil animais (outros 300 mil foram abatidos antes que a falta de chuva os matasse). Entre os mais de 1 milhão de sertanejos vitimados pela estiagem, os que vivem da roça perderam 100% das lavouras de milho e feijão; e 80% dos açudes e barragens do sertão viraram pó. É o que contabiliza o governo do Estado.

 Localizada às margens do rio São Francisco, a região de Petrolina, segunda maior cidade do Estado, também é sufocante nesta época do ano. Quem deixa o município pela BR-122 rumo a Lagoa Grande mergulha em uma paisagem cinza de Caatinga ressequida. O ar tremula oleoso de quentura, e à passagem do carro, urubus preguiçosos apenas saltitam de esguelha ou levantam um vôo curto para rapidamente voltar à carcaça da vaca morta na beira da estrada. Vez por outra, cabritos mais desatentos, que vagam feito retirantes pelos acostamentos, botam susto no motorista.
Percorridos pouco mais de 140 quilômetros pela BR, pode-se quebrar à direita numa brecha de cerca sem sinalização, e seguir por uma estradinha de terra que desemboca em uma pequena agrovila. Chegou-se ao assentamento São José do Vale. Algumas curvas além, um verde desatado engole a Caatinga. Aqui, parreirais, campos de melancia, goiabeiras, mangueiras e pinha, que se revezam nos pequenos lotes, contam a história de um outro sertão.
 São José do Vale é um dos 32 assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) do lado pernambucano do Vale do São Francisco, no trecho entre Petrolina e Santa Maria da Boa Vista. Os cerca de 120 hectares do atual assentamento pertenciam à Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco), que os havia arrendado ao falido projeto Sanrisil para produção de goiaba e plantas medicinais. Em 1996, a área foi ocupada pelo MST, e um ano e dois despejos depois, no final de 1997 sua posse foi emitida para os sem terra. Com 36 famílias, São José está entre os 10 assentamentos do MST na região que se beneficiam de uma estrutura operante de irrigação.


 
Os lotes da agrovila de São José do vale são cheios de verde.

Do quase nada ao muito melhor
Nativo de Bodocó, Pernambuco, Francisco Regivaldo dos Santos deixou a terra seca dos pais em 1992 e se empregou como trabalhador em um projeto de produção de goiaba nas cercanias de Petrolina. O trabalho e o patrão não eram ruins, mas as histórias de uns e outros que conseguiram terra próprio na região mexeram com ele. Em 2000, resolveu raspar o tacho das economias e tentar a sorte em um dos lotes que vagou no assentamento de São José do Vale.
 Confortavelmente instalado à sombra de uma árvore no espaçoso quintal de sua casa, Francisco sorri quando lembra o passado. “Quando cheguei aqui não havia produção na terra. Tive que desmatar a caatinga por conta própria, e no começo passamos fome mesmo. Eu acordava todo dia às 4 horas da madrugada, saía sem comer, porque não tinha, e quando chegava em casa era só um cuscuz com café. Construímos nosso primeiro barraco debaixo da mangueira”.
Francisco e sua família juntos à plantação de pinha
Assim na aparência, pouco na vida de Francisco hoje lembra aquele começo difícil. Há quatro anos, a família terminou a construção da casa (grande até para padrões da cidade) na beira do rio. Ao lado, montou uma estrutura para receber amigos e visitantes nos finais de semana, com cozinha, churrasqueira e bar; e na garagem guarda sua caminhonete prateada.
 Da varanda da casa, separado apenas por uma ruazinha de terra, pode-se avistar o plantio de pinha e atemóia de Francisco, que ocupa 1,6 hectares. Ao lado, segue o meio hectare de manga, e pouco adiante se estendem os dois hectares de uva de mesa da família – tudo irrigado. Pelos seus cálculos, o assentado tira hoje cerca de R$ 3 mil por mês com a produção de frutas, mas já teve vez que a renda mensal chegou a R$ 10 mil. “Um ano em que tudo teve preço”, lembra. “Só posso dizer que nos últimos 12 anos a minha vida melhorou muito”, assegura rindo, só para reafirmar.
 Se a qualidade de vida melhorou, a demanda de trabalho continua a mesma. Ou melhor, aumentou. Tanto a pinha quanto a atemóia são culturas rentáveis, mas que precisam ser polinizadas manualmente, explica Francisco. Isso significa introduzir manualmente o pólen nas flores de cada planta para garantir a frutificação.  Já o manejo da uva – carro-chefe dos assentados de São Jose, e que rende duas colheitas anuais –, exige uma dedicação que pode inviabilizar áreas maiores.
 Grosso modo, o custo inicial para a estruturação de um hectare de uva de mesa irrigada em São José do Vale é de cerca de R$ 50 mil, contando-se a aquisição dos mourões, dos arames e da estrutura de irrigação por gotejamento (bomba de água, dutos e mangueiras).
Comprar itens usados pode diminuir os gastos – paliativo adotado por vários assentados, muitos dos quais se estruturaram basicamente com verbas do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) –, mas o manejo no período de produção é invariavelmente trabalhoso e caro: depois da florada, é preciso uma primeira varredura do parreiral para ralear os cachos de forma a permitir uma produção uniforme e de qualidade. Uma segunda varredura é feita quando a uva está amadurecendo, e, com muito cuidado, examina-se cacho a cacho e retiram-se os frutos danificados, para que os demais não sejam contaminados e perdidos. Depois da colheita, segue-se a poda do parreiral, e uma espera de 60 dias para que as plantas reiniciem o ciclo produtivo.
“Aqui todo mundo é apaixonado pela uva, mas nosso maior problema é achar e pagar a mão-de-obra necessária. Uma diária está saindo por volta de RS 27, e tem mulher ganhando até 80 reais por dia para ralear uva. É caro demais ter que contratar; nessa atividade não dá pra ter funcionário”, explica Francisco, que, no entanto, já paga cinco ajudantes.
 A capacidade do assentamento de ser praticamente autossuficiente no que tange a mão-de-obra – quando as próprias famílias não dão conta do trabalho, a ajuda vem dos vizinhos – lhe confere uma vantagem considerável sobre os grandes projetos de fruticultura irrigada da região, explica o coordenador regional de produção do MST, Edinaldo Ramalho Leite, o Neguinho. “Tem duas coisas que temos que levar em conta: o pequeno produtor tem que diversificar as culturas para garantir uma renda estável. E não pode exagerar na área de uva. Independente da variação do preço da produção, o pequeno se segura. Já os grandes estão quebrando”, afirma Neguinho.
Por outro lado, a organicidade dos assentamentos também confere aos assentados uma vantagem sobre a agricultura familiar convencional na região. De acordo com Nildo Martins, coordenador estadual do setor de produção do MST, não há estatísticas comparativas sobre a renda de uma família assentada e de uma não assentada, mas a diferença é considerável, tendo em vista o custo de produção, as dificuldades no acesso ao créditos, a descontinuidade tanto da liberação dos recursos (quando se consegue liberar) quanto no acompanhamento técnico, e a falta de equipamentos para irrigação. Assim, o que para uma família individual são problemas de difícil solução, nos assentamentos muitas vezes é encaminhado em negociações coletivas, fortalecidas pela intervenção do MST.
Nesse sentido, avalia Nildo, apesar da inexistência de dados organizados sobre a média dos vencimentos de uma família assentada, é possível afirmar que as condições de vida são superiores às da média regional. “A criação de pequenos animais e a produção de hortaliças, grãos e frutíferas tanto nas áreas de produção quanto no entorno das casas, garantem parte dos alimentos que vão diretamente à mesa do assentado. Com a comercialização da produção excedentes das parcelas, em boa parte dos assentamentos calcula-se – a partir de relatos dos assentados – uma renda de aproximados de 1,5 a 2,0 salários mínimos/mês”.


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